CRÔNICAS DO CORONAVÍRUS – DIÁRIOS DA QUARENTENA – PARTE II: MILAGRE NA CELA 7

Por eu mesmo:

De tanto ouvir falar na sensação do momento, o filme turco O milagre na Cela 7, finalmente eu e a Senhora Marreco nos decidimos a assisti-lo (e que tal essa ênclise? Deixaria o ex-Presidento Michel Temer orgulhoso!), depois de um longo período de preparação psicológica e emocional, pois os testemunhos eram de que a história era devastadoramente triste, de fazer qualquer motoqueiro dos Hell’s Angels chorar como uma garotinha. Cinéfilos inveterados em crise de abstinência, lá fomos nós, acompanhar as desventuras em série do pobre Memo e sua filhinha, Ova.

Ora pois, é o seguinte: Memo, viúvo, pastor de ovelhas, pobre, mora com a vovó Fatma e cuida da filha, a pequenina e doce Ova, na opressiva Turquia. Um terrível acidente o leva à prisão e à uma sentença de morte; acompanhamos a saga de Memo na prisão e todo o seu sofrimento decorrentes do ódio de um militar e de seus colegas de cela, além da separação de sua amada filhinha. a certa altura, olho para o lado e vejo Letícia fungando e se debulhando em lágrimas; enquanto isso, eu aguardo as fortes emoções prometidas, refletindo sobre os motivos pelos quais eu, um notório chorão, ainda não acompanho a mulher no pranto. Terei me tornado um insensível? Estaria eu sendo contaminado pelo sentimento de f*da-se disseminado pelo notório Capitão que ora nos governa? Como as agruras de Memo ainda não me comovem?

Não, não é isso. Acontece que, enquanto o drama se desenrola diante dos meus olhos ainda secos, meu cérebro martela incessantemente o refrão de Gil: “alguma coisa está fora da ordem…”

Deixo Memo sofrendo sozinho por um instante e vou ao Google: mistério desvelado!

Descobri que, ao contrário do que eu havia imaginado, a trama não é baseada ou inspirada em fatos reais; aí eu entendi o motivo pelo qual meu cérebro se recusou a “comprar a ideia” do filme; desde os primeiros minutos, eu ficava me perguntado: “mas esse cara é um deficiente mental; será possível que ninguém está vendo isso?”

Sim, o pobre Memo (interpretado magistralmente por Aras Bulut Lynemli) é portador de uma severa e evidente deficiência mental, mas ninguém além da vovó Fatma e da professora de Ova parece notar -ou se importar com- esse fato. E é aí que mora o problema; aí o filme desmorona, pois, como diria o velho Borges (eu acho), a ficção, ao contrário da realidade, não pode prescindir da coerência; não pode se dar ao luxo de ser inverossímil, nem abrir mão de fazer sentido. Ou algo parecido. Enfim.

“Alto lá!”, brada, atento e furioso, meu leitor imaginário; “E Kafka?! Hã?! E Kafka?! Esqueceu de Kafka, sabichão?”

Não, não esqueci de nada. Quer dizer: esqueci de muita coisa, mas não de Kafka. E certamente não esqueci do infeliz Gregor Samsa que, logo no primeiro parágrafo de A Metamorfose, “certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso“. “Ahá!”, retorna o imaginário leitor (ou terá sido outro, também fictício?); “Diz aí qual é a verossimilhança possível na história de um cara que acorda transformado numa barata gigante?”

A mesma verossimilhança de um filme sobre um cara que combate o crime numa grande metrópole vestido de morcego. Ou de fábulas sobre raposas e leões falantes. Ou de um livro sobre magos, elfos e hobbits à procura de um certo “anel para todos governar“. Ou de um conto sobre um cavaleiro em busca do “rio secreto que purifica da morte os homens“. Ou seja: nenhuma. Ou seja, a verossimilhança do sonho, a verdade da fantasia. Ou seja: toda. Pois a fantasia e, por conseguinte, a literatura fantástica “nasceu com o homem” (Borges, de novo); brota nos sonhos (R. L. Stevenson dizia que os “Brownies”, pequenas criaturas, sussurravam ideias em seus ouvidos enquanto ele dormia) como O médico e o monstro; ou seja, a verossimilhança do fantástico, do inefável, do surreal, do absurdo; a verossimilhança de um universo sobrenatural onde tudo é possível.

Porém uma história que pretende transcorrer no mundo real não pode abrir mão da aparência de verdade, sob pena de soar como uma farsa. E é exatamente esse o problema de…

“Espere aí!”, interrompe, afoito, o leitor imaginário; “E se o filme for justamente um enredo kafkiano?”

“Hã? Como assim?”, respondo, surpreso.

“Isso mesmo”, insiste ele; “vai ver o filme é uma trama genuinamente kafkiana, como em ‘O Processo’, onde apenas o protagonista, réu de um processo absurdo, percebe a surrealidade da sua própria situação! Talvez o filme seja uma metáfora criticando os regimes opressores e totalitários, onde as liberdades individuais sejam massacradas diariamente!”

“Hã?” (meus olhos começando a marejar)

“Sim! Sim! Veja: Memo tem óbvios problemas mentais; porém, ninguém parece notar, e ele é tratado -muito maltratado, por sinal- como se fosse qualquer um de nós. Ou seja, como se a sua situação fosse absolutamente normal. O que é kafkianamente absurdo!”

“Hã?” (começo a fungar)

“Sim, sim! Pobre Memo, sozinho no mundo, perplexo diante da maldade, incapaz de se defender por si mesmo e de compreender o terrível mundo à sua volta! Pobre Ova, pequenina, tentando a todo custo reencontrar seu querido papai, seu papaizinho bonzinho! Kafka purinho, meu chapa!”

“Hã?” (estou soluçando profundamente)

“Lingo lingo!”

Começo a chorar copiosamente.