A (OUTRA) VISITA. OU: MEUS FANTASMAS SE DIVERTEM

Por Paulo Marreco:

VIERAM TODOS DE UMA VEZ, assim, literalmente do nada, sem avisar; meus fantasmas simplesmente acharam que era boa ideia aparecerem no meio da noite para uma visita. Acordei num estalo e lá estavam eles, todos eles, no escuro, encostados num canto. Como sempre, não disseram nada; como sempre, nem precisavam dizer: ao vê-los ali reunidos, de imediato soube que voltaram para me assombrar.

Mas, não se engane: meus fantasmas não assombram como as assombrações normais. Nada destas obviedades de correntes se arrastando, sussurros no escuro, objetos flutuando ou lençóis brancos levitando pelo quarto; meus fantasmas me atormentam e apavoram, imóveis e em silêncio. Apenas olhando para mim são capazes de fazer brotar o terror do fundo da alma.

Por que em seus olhares exprimem, cada um deles, a frustração a decepção a tristeza a mágoa a ferida que lhes causei, a cada um a seu tempo e lugar, a cada um conforme não lhe era devido, a cada um na medida da minha iniquidade ou covardia ou vileza. Imóveis e em silêncio e sem me acusar decretam a minha justa sentença: culpado!

Culpado de cada palavra de carinho ou incentivo não dita, de cada ofensa não refreada, de cada promessa rompida, de cada afeto sonegado, de cada afago retido, de cada abraço contido, de cada mão recolhida, de cada intenção desfeita. Decretam minha culpa em silêncio pois não precisam emitir seu veredito; minha sentença emerge não de suas gargantas silenciosas, mas das profundezas da minha consciência; meus olhos refletidos nos seus olhos revelam meus próprios atos e omissões que eu sempre soube errados, porém nunca fui capaz ou não tive coragem de reabilitar; sou culpado e minha triste e longa pena é revolver tais remorsos até meu último suspiro, quando então me juntarei a eles, os meus fantasmas.

Então estaremos todos finalmente em paz.

O dia em que a guerra parou

Por Paulo Marreco:

NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, o exército alemão combatia franceses e ingleses nas imediações da fronteira da Bélgica. Uma faixa de cerca de 400 metros de extensão, a chamada “terra de ninguém”, separava as trincheiras inimigas; pobres soldados feridos e corpos mutilados povoavam a área; não era possível distinguir a nacionalidade do sangue que embebia o solo endurecido pelo inverno.

O implacável combate durava meses, mas, naquela noite, a guerra cessou. Soldados emergiram de ambos os lados das trincheiras, entoando canções, trocando apertos de mão, compartilhando comida, bebida e cigarros, ajudando o outro lado a enterrar seus mortos e a homenageá-los. E desejando-se mutuamente um…

Feliz Natal.

Sim, era 24 de Dezembro de 1914, e o nascimento do Cristo apazigou e uniu os corações dos homens que, horas antes, se esforçavam na mórbida tarefa de matar-se uns aos outros.

Nas cartas que enviaram aos seus familiares, muitos soldados narraram o assombroso evento como algo “maravilhosamente espantoso, ainda que muito estranho”.

Estranho sim; e, por que não… divino?

Um dia, o Filho aniquilará para sempre todas as guerras; um dia o Filho enxugará dos olhos toda lágrima.

Até lá, lembremos sempre da vinda do único capaz de promover a paz entre os homens.

Feliz Natal!