O HORROR…

We are the hollow men...

We are the hollow men…

Por eu mesmo:

Joseph Conrad escreveu No coração das trevas (Heart of Darkness, 1902) a partir de sua experiência no Congo. Imbuído do nobre propósito de “abrir para a civilização a única parte do nosso globo onde o cristianismo ainda não penetrou e eliminar a escuridão que cobre a população inteira”, Leopoldo II, rei da Bélgica, iniciou o processo de colonização daquele país africano. A prática viria demonstrar que na verdade o maganão queria mesmo era se locupletar, encher as burras com o vil metal, exaurindo literalmente até o tutano as riquezas da colônia através da extração de ouro, borracha, diamantes e marfim. A obra retrata as atrocidades cometidas contra os “bárbaros” locais pelos “civilizados” belgas, e foi adaptada para o cinema em 1979 no magistral Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. No filme, a ação foi transportada para a guerra do Vietnã; o personagem central continua sendo Kurtz; porém, ao invés de funcionário da Companhia, coletor de marfim, foi alçado ao posto de coronel, desertor do exército americano, provavelmente enlouquecido. Enquanto comanda com mão de ferro uma milícia e trucida seus oponentes, espetando suas cabeças em estacas espalhadas pela mata, Kurtz recita delicados versos de Hollow Men, de T. S. Elliot. Provavelmente, Conrad pretendia denunciar a maldade que habita a alma humana, apenas contida mediante freios impostos pela civilização; distante dos olhares repressores, da lei e demais freios, “no coração das trevas”, o verniz de humanidade escorre e a besta emerge em toda a sua crueldade, assombrando, assolando e oprimindo tudo o que cruza seu caminho, restando apenas nas palavras do próprio Kurtz, “o horror…”

O horror…

Quarta-feira, dois de setembro.

O corpinho miúdo de Aylan Kurdin, 3 anos de idade, é lançado pela maré numa praia da Turquia. Ele, seu irmão, de cinco anos, e sua mãe morreram afogados, juntamente com outras nove pessoas, quando a embarcação em que tentavam chegar à Grécia naufragou. Eles fugiam da violenta guerra civil que explodiu na Síria em 2011, já matou mais de 215.000 pessoas e expulsou mais de dois milhões de sírios de seu país. No bojo do conflito pela tomada do poder, ainda nas mãos sujas de sangue do ditador Bashar al-Assad, emerge  o grupo jihadista Estado Islâmico, que pretende converter, não apenas a Síria, mas todo o mundo num imenso califado.

O horror…

Na obra de Conrad, o horror era representado pela escravização e suplício dos negros; hoje, os extremistas do EI e do Talibã explodem ruínas arqueológicas e impõem aos olhos atônitos do mundo um desfile macabro de fuzilamentos, decapitações, apedrejamentos, sepultamento de pessoas vivas, escravização sexual de mulheres e uma vasta gama de atrocidades impensáveis.

A violência da colonização europeia na África decorreu da ganância; a violência do Estado Islâmico e congêneres procede da fé. Estes fundamentalistas acreditam ser sua missão divina converter ou exterminar os infiéis.

O horror…

A Europa foi protagonista do abjeto processo de colonização da África; aqueles eram outros tempos, aquele era outro mundo. Agora, diante do massacre na Síria, a Velha Senhora fecha suas fronteiras aos refugiados e lhes nega a oportunidade de escapar aos seus algozes. O Ocidente, Europa em particular, testemunham o surgimento de uma nova onda colonizadora. Ainda mais brutal, grotesca e bárbara. Agora, os colonizados somos nós.

Aylan Kurdin, em sua inocência infantil, seguramente não compreendeu o processo de violência que tirou sua vida. Apenas testemunhou a impotência, o medo e o horror nos olhos de seus pais, trágicos instantes antes de submergir.

Aylan, ceifado em sua inocência, descansa em paz.

Mas que sua morte não tenha sido em vão. Que o sacrifício de Aylan sirva para despertar a Humanidade de seu torpor. Antes que seja tarde.

O horror… o horror…